MANAUS – Três procuradores do Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul (MPF-RS) abriram um inquérito civil para investigar os resultados preliminares do estudo CloroCovid19, desenvolvido no Amazonas, e os pesquisadores envolvidos.
Os resultados iniciais da pesquisa mostraram que o uso de uma dose alta de cloroquina em pacientes graves de Covid-19 eleva o risco de morte. A informação, divulgada antes da conclusão do estudo para alertar a sociedade (que está numa corrida global em busca de um tratamento eficaz contra a doença, e outras pesquisas já chegaram a conclusão semelhante), provocou revolta de entusiastas do medicamento.
Pesquisadores receberam ameaças de morte nas redes sociais e, para desqualificar o achado científico, tiveram suas preferências políticas expostas no Twitter pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, Jair Bolsonaro, que capitaneou uma campanha pública pelo uso da cloroquina no tratamento da Covid-19. Eduardo também responsabilizou os médicos pelas mortes de pacientes.
O inquérito
A portaria de abertura do inquérito do MPF-RS foi publicada na segunda-feira (20) e é assinada pelos procuradores Alexandre Schneider, Higor Rezende Pessoa e Wesley Miranda Alves, da Procuradoria da República no Município (PRM) em Bento Gonçalves.
Para abrir apuração em âmbito federal, o trio justificou que a pesquisa teve financiamento parcial de verbas federais. Os procuradores consideraram ainda “fragilidades epistemológicas e procedimentais do estudo, cujos resultados podem influenciar medidas de enfrentamento farmacológico à propagação do COVID-19 na população brasileira como um todo e inclusive aos cidadãos residentes e usuários do sistema de saúde nos municípios que integram a PRM-Bento Gonçalves/RS (sic)”.
Os procuradores afirmam também que a dose usada no estudo foi “quase 3 vezes a dose máxima segura”.
Também sugerem “a falta de pesquisa na fase precoce do processo infeccioso, antes da fase inflamatória, na qual protocolos antivirais têm pouco efeito”, registrando que o próprio estudo CloroCovid19 declara a necessidade de novas pesquisas nesse sentido. “(…) numa direção diferente da que foi adotada”, diz trecho a portaria.
Como providência inicial, os procuradores pediram que à Assessoria de Pesquisa e Análise Descentralizada do órgão descubra a titulação acadêmica, endereço para intimação e vínculos profissionais de todos os pesquisadores envolvidos no estudo.
A portaria de abertura de investigação também deu 10 dias para que os pesquisadores respondam a 32 questionamentos com documentos que comprovem o que vão responder.
Os membros do MPF-RS querem saber detalhes da pesquisa e outras informações como o tempo de metabolização do medicamento e sua dose letal.
Por fim, no 32º quesito, eles questionam: “A partir desse estudo é possível concluir ser a Cloroquina uma medicação não segura e eficaz para o tratamento de pacientes em saúde pública?”.
Em nota, a Fundação de Medicina Tropical (FMT) informou que responderá aos questionamentos MPF-RS e destacou que a pesquisa desenvolvida no Amazonas teve o protocolo aprovado pela Comissão Nacional de Ética e Pesquisa (Conep) do Conselho Nacional de Saúde.
O procurador
Um dos autores da portaria que abriu o inquérito, o procurador Alexandre Schneider, é crítico do isolamento social e também defensor do uso da hidroxicloroquina e azitromicina para o tratamento da Covid-19.
Em outro inquérito, aberto no início deste mês, Schneider questionou o governo federal porque razão “ainda não lançou um protocolo clínico para a utilização desses medicamentos mesmo com as evidências da eficácia na cura da doença”.
Em resposta a uma nota pública de colegas do MPF da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), publicada no último dia 11, na qual alertavam sobre os riscos do afrouxamento das medidas de distanciamento social, Schneider rebateu os argumentos com uma nota à imprensa.
Na nota, publicada no dia 14, entre outras coisas, Schneider afirmou que o Governo do Rio Grande do Sul tem adotado medidas excepcionais “que em muitos casos implicam em vedação da liberdade e do exercício laboral sem uma consequente contrapartida ou fornecimento de alternativa à subsistência de famílias sujeitas a essas restrições”.
Disse que tem recebido “apelos públicos e particulares acerca da ocorrência de dificuldades em famílias que não prescindem dos proventos de suas atividades laborais diárias para provimento e providências de obtenção de alimentação, saúde, assistência, habitação, aquisição de medicamentos, tratamentos e outros insumos básicos à sobrevivência, e que estão com sua renda limitada por esses atos, bem como constrangidas por um verdadeiro ‘estado policial’ que se instalou”, ao discordar do posicionamento da PFDC.
O procurador também já ofendeu uma jornalista nas redes sociais, da mesma forma que fez o presidente Jair Bolsonaro, ofensa de cunho sexual, por causa de revelações dela que comprometeram alguns empresários na CPMI das Fake News. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) levou o caso ao procurador-geral da República, Augusto Aras.
O estudo
O infectologista Marcus Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), coordena o estudo, alertou que a cloroquina em dose alta não deve ser usada. A pesquisa com a dose segura do medicamento, no entanto, continua em andamento.
Na semana passada, quando foi um dos alvos de ataques e ameaças na internet, Lacerda alertou ainda que o uso preventivo (profilático) da cloroquina também tem levado à piora de pacientes com o quadro ainda menos grave.
Segundo Lacerda, o estudo ainda não permite concluir que uma dose baixa de cloroquina funciona ou não para a Covid-19.
Mais de 70 cientistas participam do estudo que envolveu, até agora, 81 pacientes em estado grave internados no Hospital Delphina Aziz, em Manaus. Onze deles morreram.
Além da FMT-HVD, integram o grupo pesquisadores membros da UEA, da Fiocruz e da Universidade de São Paulo (USP).
Esclarecimentos
Em carta reproduzida no site da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), o pesquisador Marcus Lacerda fez uma série de esclarecimentos sobre o estudo, entre eles que o CloroCovid-19 foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conepe) e que todos os pacientes e/ou familiares foram orientados sobre o objetivo da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, tendo uma cópia arquivada no centro e a outra entregue ao paciente, com assinaturas originais.
Um comitê independente de monitoramento e segurança composto por especialistas médicos nacionais e estrangeiros no campo monitoraram remotamente os resultados diariamente.
Segundo Lacerda, assim que foram observadas as primeiras mortes de pacientes em uso de qualquer dose de cloroquina, próxima da média mundial, o comitê solicitou prontamente a análise dos dados.
Até então, 11 pessoas tinham morrido, a maioria idosa, como é o perfil de pacientes críticos em todo o mundo.
“Naquela época, havia uma tendência para mais efeitos colaterais em pacientes que usavam a dose mais alta”, informa o cientista.
“A dose alta foi imediatamente suspensa e todos os participantes começaram a usar a dose mais baixa em 6 de abril”, destacou Lacerda, ressaltando que a Conepe foi comunicada oficialmente e que, para maior transparência e visibilidade internacional da descoberta, os resultados foram divulgados no site do MedRxiv.
“A intenção era alertar outros pesquisadores em todo o mundo sobre a toxicidade de uma dose alta, que, embora teoricamente pareça mais eficaz, estava causando mais danos do que benefícios”, registrou.
A primeira conclusão do estudo foi que pacientes gravemente enfermos com Covid-19 não deveriam mais usar a dose recomendada no consenso chinês, que até então não era suportado por evidências científicas, uma vez que nenhum estudo realizou adequadamente a avaliação de segurança, como eletrocardiograma diário, como aconteceu em Manaus “sob orientação de cardiologistas experientes e renomados”, ressalta.
“Altas doses parecem ser seguras para pacientes com câncer, mas não em pacientes graves com COVID-19, especialmente os idosos. Uma possível explicação levantada no artigo é a ocorrência de miocardite, ou seja, a inflamação do músculo cardíaco”, observou Lacerda na carta.
Segundo ele, o estudo não permite concluir que uma dose baixa de cloroquina funciona ou não para o Covid-1 “porque não possui o grupo comparador de controle, ou seja, sem o uso do medicamento”. “Estudos adicionais para responder a essa pergunta estão sendo realizados neste momento, em outras partes do planeta”, informa.
Defesa da ciência
Conforme mostrou o ESTADO POLÍTICO, várias entidades científicas repudiaram os ataques que os pesquisadores vêm sofrendo nas redes sociais.
Em nota, a SBMT ressaltou que o número de pacientes que morreram durante o estudo está dentro da média mundial. Assim como outras entidades, repudiou os ataques aos pesquisadores. “Deixem os cientistas trabalharem em paz!!!”, suplicaram.
Também em nota, o diretor-presidente da FMT-HVD, Marcus Vinitius Guerra, ressaltou que a equipe de pesquisa CloroCovid19 constatou que muitos paciente que deram entrado no Hospital Delphina Aziz já estava fazendo uso de cloraquina ou hidroxicloraquina por conta própria, o que Lacerda já vinha alertando.
O diretor disse que as publicações nas redes que atacam os resultados preliminares do estudo “são preconceituosas e claramente desprovidas de conhecimentos da metodologia científica”. “É pejorativo o uso do termo ‘cobaias’. Todos os participantes de ensaios clínicos assinam termos de responsabilidade e estão cientes dos riscos”, observou.
Na carta reproduzida no site da SBMT, Marcus Lacerda apontou que uma “onda de reações de natureza ideológica, de pessoas que nunca leram o estudo na íntegra, sem treinamento científico, motivou manifestações violentas de natureza pessoal ao pesquisador principal, sua família e equipe, que desviou a atenção e o foco de o trabalho realizado aqui durante a pandemia”.
O pesquisador que tais distorções fazem com que os pacientes e suas famílias tenha medo do que pode ter acontecido na pesquisa “apesar de a equipe estar em constante contato com todos os participantes e suas famílias, com o objetivo de orientar e confortar as pessoas que já sofreram imenso trauma”.
“O debate não está apenas tendo um forte viés ideológico, mas também prejudicando a reputação de pesquisadores com uma forte tradição de pesquisa no Brasil e no mundo, o que pode ser um efeito deletério sério às vezes como estamos vivenciando”, afirma.
Os pesquisadores, garante Lacerda, não têm laços ideológicos ou partidários. “(…) seu compromisso é apenas com a boa ciência”, acrescenta.
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