MANAUS – Após ser alvo de críticas do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), a aluna Cris Guimarães Cirino da Silva, mestranda no programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), teve o carro arrombado e a bolsa com documentos furtada.
O crime foi registrado em uma delegacia localizada no Parque Dez.
Cris começou a ser alvo de ataques nas redes sociais após ter uma foto sua durante apresentação referente ao andamento de sua pesquisa que tem como tema “A Bolsonarização da esfera pública: Uma análise Foulcatiana sobre (RE) produção de memes a partir dos discursos de ódio nas falas de Bolsonaro”, publicada no Twitter do filho de Jair Bolsonaro.
Na legenda da publicação, Eduardo Bolsonaro escreveu: “Alguém me diga que isso é mentira…Não sei se dou risada ou se choro”.“Em mensagens nas redes sociais, me disseram que eu iria chegar no (meu) carro e iria encontrar o veículo com os quatro pneus furados. Furado não foi, mas assaltado sim. Coincidência ou não, foi nesse movimento todo. Espero de coração que seja coincidência”, disse a estudante.
A apresentação do andamento do trabalho da mestranda ocorreu na quinta-feira (21), e no mesmo dia, segundo a estudante, começou a repercussão.
“Apresentei meu trabalho na quinta-feira (21) sobre o andamento da minha pesquisa. Não é ainda a dissertação de mestrado. Apenas alguns resultados. Na mesma quinta-feira começaram a reverberar de forma agressiva o tema. Aí sexta e sábado foram o ápice da divulgação, sendo retwitado pelo Eduardo Bolsonaro e Olavo de Carvalho resultando em mais ódio e xingamentos”, relatou Cris Guimarães ao ESTADO POLÍTICO.
A estudante agradeceu ao trabalho da Ouvidoria-Geral da Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-AM), que a atendeu e passou as orientações necessárias.“Gostaria de fazer um elogio a Ouvidoria da Secretaria de Segurança Pública, na pessoa do Dr. João Victor Tayah, que me recebeu e orientou”, destacou Guimarães.
Questionada se as ameaças que vem sendo vítima a intimidam de seguir com a dissertação de mestrado, Cris Guimarães declarou que “jamais”.
“Embora eu sinta medo sobre minha integridade física e da minha filha. Ainda mais agora que tenho mais materialidade para analisar. Darei continuidade e engatarei o doutorado. Essa é minha meta”, concluiu.
Abaixo, confira a íntegra da mensagem do professor Leonard Cost, orientador da mestranda Cris Guimarães:
Fui surpreendido com uma foto do primeiro slide de apresentação da minha orientanda que pesquisa sobre Bolsonaro, fake news e memes viralizando na internet. Na divulgação das mídias sociais, algumas pessoas interpretaram que havia uma defesa de dissertação de mestrado. Não ainda. Foi uma apresentação em um seminário de metodologia promovido pelo Mestrado em Letras da Ufam.
Ainda em 2019, ela deve qualificar a dissertação para somente aí se preparar para a defesa, ano que vem.
Ela é uma ótima aluna, e o trabalho caminha muito bem. Por que tanta repercussão?
Porque o trabalho lembra as fake news do Presidente Bolsonaro. A técnica não é difícil. Coletam-se posts onde o discurso de ódio está presente, assim como fake news também. Após fazer isso, se busca explicação analítica dentro do pensamento de Foucault. É uma pesquisa no âmbito da Análise do Discurso.
Parece que o resultado de tanta reverberação se deve ao fato de, supostamente, estarmos doutrinando pessoas. Espalhando o marxismo através de mecanismos vis para fazer que, assim, o PT retorne ao poder, implementemos uma República Bolivariana e, então, o comunismo chegue de vez ao planalto.
Ora, além dessa visão ser absurda e nonsense, ela é facilmente desmontável. Procurei demonstrar o autoritarismo e o lado fake news em um artigo escrito em coautoria com meu amigo Éderson Silveira. Segue o link do trabalho, intitulado Efeito Bolsonaro. Anatomia do autoritarismo. Há no livro que coleta esses artigos, aliás, excelentes textos. A distribuição é online e gratuita.
O Bolsonaro dispara fake news (basta ler o artigo) e é um sério risco para a democracia brasileira. O mesmo ato de violência que ameaça uma mestranda de depredação do seu carro, corrobora com o fuzil substituindo a diplomacia e a autocracia substituindo a democracia.
É preciso falar, se posicionar, criticar, caso não queiramos ver o Brasil ter uma Constituição feita, não por motivos jurídicos, mas por motivos autoritários.
A Democracia é mais importante que a direita e a esquerda.
A violência é uma lâmina que fere a quem recebe a facada, tanto quanto quem a utiliza.
Mais debate
Sem xingamento
Sem violência
Sem ameaça
Desconfiem daqueles que pregam a violência para fazer justiça, quando na verdade querem se vingar.
Discursar contra a imprensa, a universidade e intelectuais não constrói nenhum país; na verdade, só os destrói.
Abaixo, leia a nota da ADUA (Associação dos Docentes da Ufam) sobre o caso:
A Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Amazonas (ADUA-SSind), do ANDES-SN, vem a público a manifestar solidariedade aos integrantes da comunidade universitária que vêm sendo brutalmente agredidos pelas redes sociais em razão do exercício da liberdade de pensamento, expressão e de ensino, estabelecidos na Constituição Federal de 1988.
Ações de violência como essa que a cada dia têm se tornado mais corriqueiras e demonstram ódio a professores, professoras, servidores públicos, servidoras públicas, mulheres, negros, negras e LBGTs são veementemente repudiadas pela ADUA. Conclamamos os professores e professoras a denunciar toda e qualquer ameaça, agressão, censura e assédio. O enfrentamento do discurso de ódio contra os e as docentes da UFAM deve ser realizado de forma incisiva e unificada.
O ataque a professores, professoras e discentes é um ataque a toda a comunidade universitária e fere os direitos estabelecidos constitucionalmente. Portanto, é necessário que todos os colegiados da gestão democrática da UFAM se manifestem contra estas atitudes violentas e bárbaras para resistirmos aos ataques e reivindicarmos, mais uma vez, os direitos constitucionais.
Registramos nossa solidariedade ao professor Leonard Christy Souza Costa e à discente Cris Guimarães Cirino da Silva, do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFAM, e afirmamos que esse e todos os outros casos de agressão e todas as tentativa de cerceamento da liberdade de expressão de professores e professoras serão combatidos pela ADUA.
Não ao pensamento único!
Não ao discurso de ódio!
Por uma universidade pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada
A Diretoria da ADUA-SSind.
Abaixo, a publicação feita pelo professor doutor em Linguística, Sérgio Freire, sobre o episódio:
O desgovernado furacão de ódio
Sérgio Freire
O trabalho da mestranda do PPGL/UFAM Cris Guimarães sobre a bolsonarização e o discurso de ódio, orientado pelo Leonard Costa, hitou no Facebook e no Twitter. A foto da Cris apresentando o trabalho no Seminário de Linguagem e Literatura circulou em vários sites, páginas, tweets, sendo até alvo de comentário de um dos filhos do Bolsonaro. Eu li todos os comentários na postagem do Eduardo Bolsonaro, assim como li todos os comentários em algumas páginas para onde a coisa foi levada. Algumas coisas a dizer.
A primeira coisa é autoevidente. O trabalho foi tragado para o furacão desgovernado e nonsense que é esse discurso de ódio que mistura raiva psicanalítica do espectro político de esquerda, perversidade fascista, indigência intelectual com fortes sabores de psicopatia social. Exatamente o que Cris se propõe a mostrar com seu trabalho. Por mim, nem precisa defender o trabalho.
Se me chamarem para a banca, o trabalho já está aprovado porque está mais do que demonstrado o ponto da pesquisa.
Os ataques são raivosos. Dá para ouvir as rosnadas. Expõem as pessoas sem o mínimo de responsabilidade à matilha ignara hidrofóbica. No Twitter, gente pedindo a cabeça do Leo, da Cris, links para seus lattes. Prato cheio para um processo por injúria, calúnia, difamação. Mas essa gente, feito zumbis, se acha imune às responsabilidades civis. Sobrou até para o reitor, “que permite uma atrocidade dessas”, numa demonstração cabal de como essa gente deixa o ódio destilar, derretendo os dois únicos neurônios que insistem em se manter ativos, não sabendo como funcionam as coisas no mundo acadêmico e como um reitor deve ser o primeiro responsável por zelar pela pluralidade do espaço acadêmico.Sim, pois na universidade o espaço é plural e tem de ser. Se o Zé diz A e você acha que A dito não procede, construa suas argumentações e debata com o Zé até que, por argumentações lógicas – o que um luxo para essa gente – se supere as diferenças. Mas não. Cortem-lhes a cabeça, quebrem o carro deles (aconteceu com a Cris como subproduto desse episódio), apaguem essas pessoas, metafórica e literalmente, como fizeram com Marielle e tantos outros.
O que eu quero dizer, é que essa gente não sabe viver na política da superação, da diferença. Turbinado pelo discurso de ódio do bolsonarismo – olha, Cris! – fomenta a política da supressão, do apagamento daquilo que não lhe agrada. Dane-se a lei. Dane-se a lógica. Dane-se o respeito. Como se diz: são liberais na economia e conservadores nos costumes.
Acrescentaria eu: são perversos nas práticas e alucinados no raciocínio. Você ventila garantias sociais e a metralhadora dispara: Lula, PT, Venezuela, Cuba, Dilma, além dos chavões e clichés que pretensamente lhes dão legitimidade e os fazem se sentir gente cheia, vazios que são.
Uma pergunta sempre vem numa hora dessa: onde estava essa gente, meu Deus? Estavam todos aí, com suas perversidades e mal-arrumados latentes. Sempre estiveram do seu lado. Seu vizinho, seu colega de trabalho, seu tio, sua sogra.Agora eles acharam pastos e entraram, confortáveis, no efeito manada. Freud dá uma pista no seu “Psicologia das massas e análise do eu”. Leiam lá. Uns entram nisso por psicopatia e perversidade – como tem gente ruim, viu? -, outros por conveniência política, alguns por carreirismo, outros por ignorância e por falta de uma educação crítica que lhes faz muita falta, educação essa que a muitos não interessa mudar. Isso que chamei de furacão desgovernado de ódio, que traga tudo que vê pelo caminho, está crescendo, alimentado por essas práticas de intolerância.
Spoiler: esse tornado vai atingir você, amigo, que está se divertindo jogando e empurrando coisas e pessoas para o olho do furacão. Você, seus filhos, sua família, seus amores. Winter is coming, baby.
Minha solidariedade a Cris, que foi minha aluna no mestrado e cuja inquietação intelectual é o do tamanho do incômodo que causou nessa gente que se alimenta de ódio, e ao Leo, que também foi meu aluno e hoje é meu colega, sendo um dos melhores analistas de discurso que conheço. Isso é fazer ciência. A Universidade é um lugar de resistência. Resistência a tudo isso de ruim que transformou o Brasil nessa merda em que está. É ideológico, sim.
É político, claro. Como se esse chorume bolsonarista não fosse ideológico também, como se fosse a expressão mais casta da pureza dos fatos. Vamos em frente porque amanhã vai ser outro dia. Há de ser.