MANAUS – Leia abaixo a íntegra da decisão desta quarta-feira (3) em que a Justiça Federal determina a prorrogação do auxílio emergencial do Governo Federal para quem mora no Amazonas.
Caso o Governo Federal acate, o valor do auxílio deve ser de R$ 300, pelo prazo de dois meses.
A decisão:
PROCESSO: 1000726-57.2021.4.01.3200
CLASSE: AÇÃO CIVIL PÚBLICA CÍVEL (65)
POLO ATIVO: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIÃO
POLO PASSIVO:UNIÃO FEDERAL e outros
REPRESENTANTES POLO PASSIVO: GABRIELA FREIRE SADER – MG159861
DECISÃO
Trata-se de Ação Civil Pública, com pedido liminar, ajuizada pela DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO contra a UNIÃO, CAIXA ECONÔMICA FEDERAL e EMPRESA DE TECNOLOGIA E INFORMAÇÕES DA PREVIDÊNCIA – DATAPREV, objetivando a concessão da liminar no sentido de que o Judiciário conceda o auxílio emergencial a residentes no Estado do Amazonas, sob a alegação de que houve o agravamento da situação da saúde pública provocada pela pandemia de COVID-19.
Narra a Defensoria Pública da União os fatos desde a descoberta do vírus SARS-COV-2, bem como sua disseminação mundial e consequências dentro do Estado brasileiro.
Cita as ações tomadas pelas autoridades governamentais do Brasil, a começar pelo Decreto Legislativo n. 06/2020, declarando o estado de calamidade pública no Brasil, passando pela Lei 13.979/2020 a qual dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional, decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, até a criação do auxílio emergencial, pela Lei nº 13.982, de 2020, que garantia aos brasileiros de baixa renda ajuda para manutenção das medidas restritivas necessárias à contenção da doença.
Relata a gravíssima situação da saúde pública no Estado do Amazonas, que obrigou o governo local a tomar medidas restritivas extremas para conter o alastramento do contágio em vista do colapso do sistema público de saúde. Diante disso, aponta a DPU os vários atos editados pelo Estado do Amazonas os quais implicam em limitações incisivas sobre as atividades econômicas e sociais.
Alega a DPU que as taxas de ocupação dos leitos dos hospitais e os níveis de contaminação pelo vírus estão perigosamente altos, gerando inclusive escassez de gás O2, causando morte de pessoas por asfixia.
Cita que a UNIÃO foi obrigada a promover a transferência de pacientes em risco pela falta de oxigênio para outros Estados, por meio da ação n. 1000577-61.2021.4.01.3200 que tramita na 1ª Vara Federal desta Seção Judiciária do Amazonas.
Sustenta que, diante dos fatos alegados, as medidas de isolamento social são imprescindíveis para a contenção da grave situação, enquanto não haja a imunização da população, e que para isso o auxílio emergencial é fator que visa possibilitar às pessoas a cumprirem o isolamento sem prejuízos maiores ao sustento e sobrevivência das famílias e indivíduos.
A petição inicial veio instruída com os documentos anexos aos IDs n. 417740380 e 417749399.
Petição da UNIÃO juntada sob ID n. 417817457 solicita ao juízo a apresentação de manifestação prévia.
Decisão de ID n. 417758545 determinou o encaminhamento dos autos à 1ª Vara Federal desta Seção Judiciária para análise da prevenção.
Decisão de ID n. 418976879 devolveu os autos a esta 3ª Vara por ausência de prevenção.
Despacho exarado sob ID n. 419556380, reservou ao juízo a análise da liminar após a prestação de informações pelas requeridas.
Petição da Deputada Estadual ALESSANDRA CAMPÊLO DA SILVA, sob ID n.423015880 requer o ingresso no feito na condição de amicus curiae.
Intimadas as requeridas, a primeira manifestação foi apresentada pela DATAPREV, conforme documento n. 426806394 e os anexos ao documento n. 426806375.
Argumenta a DATAPREV sua ilegitimidade passiva ad causam, porque não teria competência para implantar ou ordenar a despesa com o auxílio emergencial.
Narra seu papel em relação ao auxílio emergencial, o qual, em resumo, diz respeito aos componentes técnicos em relação a dados informáticos para sua execução; acrescenta histórico normativo sobre a concessão do auxílio emergencial pelo Governo Federal, cuja autorização legislativa é necessária à realização das ações que lhe cabe.
O Ministério Público, intimado para se manifestar sobre sua atuação na presente ACP, apresentou a petição de ID n. 427067864, na qual afirma participar do processo na condição de custos legis.
Manifestação da UNIÃO foi juntada sob ID n. 428598369 pela qual, em síntese, alega: a) ser o pedido liminar contrário ao disposto no art. 1º, § 3º, da Lei nº 8.437/92 e no art. 2º-B, da Lei nº 9.494/1997, por esgotar a causa de pedir; b) a inviabilidade normativa da prorrogação do auxílio emergencial pela via eleita, mormente pelo exaurimento temporal dos normativos relacionados, ocorrendo apenas pagamentos no ano de 2021 que por motivos quaisquer não puderam ser concretizados dentro da vigência; c) a inviabilidade operacional e orçamentária da medida perquirida que exigiria o dispência de elevados custos, fora o risco que outras ações surgirem e multiplicar seus efeitos em outros Estados; d) necessidade de autorização legislativa para o aumento da despesa em função da Lei de Responsabilidade Fiscal, que impossibilita uso dos recursos de 2021, assim como, os gastos extras que se imporão ao governo seriam despesas não previstas, ampliando o déficit primário que já se encontra em 12% do PIB e a dívida pública já elevada; e) o exaurimento do Decreto Legislativo nº 6, de 2020 que reconheceu o estado de calamidade pública no país; f) violação do princípio da separação dos poderes; g) já haver precedentes contrários à pretensão.
O pedido veio acompanhado dos documentos anexos ao de ID n. 428598369.
A CEF, por sua vez se manifesta na petição de ID n. 432138432, pela qual sustenta sua ilegitimidade passiva, por ser instrumento para execução da política pública de auxílio emergencial, entre outros argumentos.
Vieram conclusos os autos. DECIDO:
QUANTO À ADMISSÃO DO AMICUS CURIAE
O Código de Processo Civil, ao dispor sobre a figura do amigo da corte, autoriza sua intervenção na causa, desde que atendido, alternativamente, qualquer dos seguintes requisitos do art. 138, caput: (a) relevância da matéria em discussão; (b) especificidade do tema objeto da demanda judicial ou (c) transcendência do litígio resultante de sua repercussão social.
A intervenção do amicus curiae, para legitimar-se, deve apoiar-se em razões que tornem desejável e útil a sua atuação processual, de modo a proporcionar meios que viabilizem a resolução do litígio.
Consoante ressalta PAOLO BIANCHI em estudo sobre o tema asseverou que “Una simile concezione riconosce, ad organi privi di connotazione democratica in quanto alla loro investitura, una funzione primaria di garanzia della democraticità del processo politico (106). È stata proposta anche un’altra ricostruzione, che vede l’ammissione degli amicus curiae briefs come strumento di legittimazione sociale delle decisioni del giudice, piuttosto che come strumento utile per raggiungere una decisione. Entrambe le considerazioni meritano di essere approfondite, e non è detto che si escludano a vicenda[1]”
Assim, a interpretação mais abalizada é a de que a admissão do terceiro na condição de amicus curiae qualifica-se como fator de legitimação ainda maior das decisões, razão por que entendo que a participação da Requerente que, ora é admitida como auxiliar o Juízo no processamento para o julgamento da lide, deve se dar da forma mais ampla, conforme autoriza o art. 138, § 2º, in fine, e nos moldes da percepção doutrinária exposta por autores como, por INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO (“As Idéias de Peter Häberle e a Abertura da Interpretação Constitucional no Direito Brasileiro”, “in” RDA 211/125-134, 133), GUSTAVO BINENBOJM, “A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira”, p. 157/164, 2ª ed, Renovar; EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO, “’Amicus Curiae’: a Democratização do Debate nos Processos de Controle de Constitucionalidade”, “in” “Direito Federal”, vol. 70/127-138, AJUFE, v.g.).
Não se olvide que o amicus curiae, não atua no processo para a defensa de interesses próprios. Ao contrário, a sua participação deve se pautar na necessidade de se defender os interesses gerais da coletividade, sendo importante salientar que, segundo ensinamento de CASSIO SCARPINELLA BUENO, “ter representatividade adequada não significa que o amicus curiae precise levar ao processo a manifestação unânime daqueles que representa. A legitimação democrática que justifica a sua intervenção não é – e nem pode ser nas democracias representativas – sinônimo de unanimidade. O que se quer é debate sobre pontos de vista diversos, sobre valorações diversas em busca de consenso majoritário; não a unanimidade.” (BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro – Um terceiro enigmático, p.118, 3ª Ed. Saraiva).
Saliento que a Deputada Estadual ALESSANDRA CAMPELO ostenta os requisitos legais (Livro III -Título III – Capítulo V do NCPC) para ser admita como auxiliar do juízo, na qualidade de amicus curiae razão pela qual autorizo que exerça as faculdades processuais de produzir ou requerer produção de provas, solicitar a realização de audiências ou diligências, oferecer embargos declaratórios e interpor o recurso contra a decisão que julga o incidente de resolução de demandas repetitivas, nos termos do art. 138, §§ 1º e 3º, do novo NCPC.
QUANTO À ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL E DA DATAPREV
Partes legítimas, resumidamente, são as pessoas titulares da relação jurídica material objeto da demanda. Assim, pode ser autor quem atribui a si o direito que pleiteia. Pode ser parte ré aquele a quem o autor atribui o dever de satisfazer sua pretensão.
A aferição da legitimidade se realiza mediante uma análise superficial acerca da pessoa que se autoqualifica como titular do direito correspondente à providência judicial que pede (legitimidade ativa), bem como acerca da pessoa que o autor da ação aponta como devedor da satisfação de sua pretensão (artigo 17, do NCPC).
Verifica-se a teor dos parâmetros e conceitos mencionados que a DATAPREV S/A, cujo artigo 1º do Estatuto Social indica tratar-se de empresa pública, sob a forma de sociedade por ações de capital fechado, vinculada ao Ministério da Economia, com patrimônio próprio, autonomia administrativa e financeira, regida pelas Leis nº6.125, de 4 de novembro de 1974, nº13.303, de 30 de junho de 2016 e nº6.404, de 15 de dezembro de 1976 e pelo Decreto nº8.945, de 27 de dezembro de 2016 – tem por objetivo a análise de sistemas, a programação e execução de serviços de tratamento da informação e o processamento de dados através de computação eletrônica, bem como a prestação de outros serviços correlatos.
Ela não é pessoa jurídica responsável pela liberação valores ou pelo pagamento do auxílio emergencial, o que é atribuição da UNIÃO, conforme legislação que rege o instituto do auxílio emergencial (Lei nº 13.982/2020 e MPv 1000/2020).
Quanto à participação da CAIXA, semelhante à empresa pública corré, atua como mero agente financeiro que presta um serviço à UNIÃO. Exerce atividade limitada de agente pagador do auxílio e responsável pela manutenção dos canais digitais para a realização de requerimentos e consultas, sem atribuição ou poder para exercer qualquer juízo de valor sobre a existência, ou não, de direito ao recebimento do auxílio.
Nesse sentido, leia-se a posição da jurisprudência a qual adiro: “O auxílio emergencial é gerido pelo Ministério da Cidadania e pelo Ministério da Economia, na forma do art. 4º do Decreto nº 10.316/2020. Logo, a ingerência acerca dos requisitos ensejadores da concessão ou não do benefício está a cargo da UNIÃO. 2. Portanto, à Caixa Econômica Federal incumbe apenas efetivar o pagamento previamente autorizado. 3. Desse modo, considerando que o pedido veiculado nos autos diz respeito tão somente à concessão do Auxílio Emergencial, não havendo discussão pertinente ao pagamento, evidente a ilegitimidade passiva da instituição financeira”. (TRF4, 5ªTR, JFRS, Recurso Cível. Proc. nº 5002661-51.2020.4.04.7101-JFRS).
Quanto à obrigatoriedade de disciplinar o pagamento e evitar a formação de filas, entendo inexistir interesse processual para a discussão neste feito, na medida em que a vedação de aglomeração de pessoas e a correta organização do atendimento bancário para o pagamento de Auxílio emergencial já foi deliberado em outro feito.
Assim sendo, impõe-se a extinção parcial da ação no que se refere ao pedido em face da CAIXA ECONÔMICA FEDERAL e da DATAPREV S/A, por ilegitimidade para figurarem no polo passivo da ação.
QUANTO À IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA EM FACE DO PODER PÚBLICO
A UNIÃO alega que a pretensão atinente à tutela provisória de urgência esgotaria todo o objeto da ação, tornando-a definitiva e impondo aos Requeridos a obrigação de pagar desde logo o benefício assistencial pretendido, razão pela qual incidiriam as normas de vedação de sua concessão, diante do que sustenta ser incabível a tutela provisória de urgência por força da disposição do art. 1º, § 3º, da Lei nº 8.437/1992 c/c o art. 1º da Lei nº 9.494/1997 e o art. 1.059 do NCPC.
Para maior clareza e compreensão da matéria, transcrevem-se os dispositivos:
Lei nº 8.437/92: “Art. 1º Não será cabível medida liminar contra atos do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal. () § 3º Não será cabível medida liminar que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação”.
Lei nº 9.494/97: “Art. 1º Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei nº 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992”.
Código de Processo Civil: “Art. 1.059. À tutela provisória requerida contra a Fazenda Pública aplica-se o disposto nos arts. 1º a 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, e no art. 7º, § 2º, da Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009.”
Diante deste contexto, cabe assinalar que o ordenamento positivo brasileiro não impede a concessão de tutela antecipada contra o Poder Público. Na realidade, uma vez atendidos os pressupostos legais fixados e observadas as restrições estabelecidas na Lei nº9.494/97, tornar-se-á lícito ao magistrado deferir a tutela antecipatória requerida contra a Fazenda Pública.
Isso significa que juízes e Tribunais poderão antecipar os efeitos da tutela jurisdicional em face do Poder Público, desde que o provimento de antecipação não incida em qualquer das situações de pré-exclusão referidas, taxativamente, na legislação pertinente.
A Lei nº 9.494/97, ao dispor sobre o tema, ora em análise, assim disciplinou a questão pertinente à antecipação da tutela relativamente aos órgãos e entidades do Poder Público: “Art. 1º – Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil, o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e art. 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, e no art. 1º e seu § 4º da Lei nº 5.021, de 09 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992.”
Dito de outro modo, o exame dos diplomas legislativos mencionados no preceito em questão evidencia que o Judiciário, em tema de antecipação de tutela contra o Poder Público, somente não pode deferi-la nas hipóteses que importem em: (a) reclassificação ou equiparação de servidores públicos; (b) concessão de aumento ou extensão de vantagens pecuniárias; (c) outorga ou acréscimo de vencimentos; (d) pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias a servidor público ou (e) esgotamento, total ou parcial, do objeto da ação, desde que tal ação diga respeito, exclusivamente, a qualquer das matérias acima referidas; nenhuma das hipóteses de vedação legal do deferimento da tutela interinal estão presentes no presente caso.
Ademais, tem sido reiteradamente decidido pela Jurisprudência que “a irreversibilidade da medida não constitui óbice ao deferimento de antecipação da tutela, sendo risco inerente ao processo judicial e ao Estado Democrático de Direito, e como tal deve ser suportado por toda a Sociedade”. (TRF4. AGRG no RE 271/286/RS).
Nesse mesmo sentido é a interpretação jurisprudencial do Tribunal TRF1, segundo o qual “as normas legais que regem a antecipação dos efeitos da tutela contra a Fazenda Pública (…) devem ser interpretadas conforme a Constituição Federal, de modo a permitir, em casos excepcionais e para evitar o perecimento de direito, o deferimento de medida satisfativa ou o provimento antecipatório parcialmente irreversível” (AGA 0066225-80.2013.4.01.0000/BA, 6ª Turma TRF1). Veja-se, ainda, o precedente: TRF1, AC 0002985-75.2008.4.01.3304/BA, Rel. Desembargador Federal Kassio Nunes Marques, Sexta Turma, e-DJF1 de 11/02/2014.
Da mesma forma, Tribunais Superiores pátrios reconhecem ser plenamente viável e possível a antecipação da tutela contra a Fazenda Pública, ainda mais quando o objeto da antecipação é assegurar a garantia de direitos fundamentais. Vejam-se: STA 761 AgR. STF -Tribunal Pleno, julgado em 07/05/2015, DJe-101 – public. 29-05-2015;. AG.REG. no recurso extraordinário com agravo 0002434-69.2014.8.19.0000-RJ. 2ª Turma do STF.
Diante do exposto, rejeito a alegação deduzida pela UNIÃO quanto à suposta impossibilidade jurídica de deferimento da tutela de urgência.
QUANTO AO PEDIDO DE PROVIMENTO INTERINAL
Em exame ao pedido de tutela de urgência pleiteado, passo a tecer as seguintes ponderações.
Com o fito de garantir a efetivação da tutela provisória, o juiz poderá determinar todas as medidas que considerar adequadas ao alcance do cumprimento da ordem judicial, sem perder de vista o caráter provisório do pronunciamento, a natureza da obrigação perseguida e possibilidade do uso de meios atípicos de coerção estatal (art. 139, IV do NCPC).
Reza, pois, o art. 300 do NCPC que: “Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. § 1º. Para a concessão da tutela de urgência, o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la. § 2º. A tutela de urgência pode ser concedida liminarmente ou após justificação prévia. § 3º. A tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.”
O elemento característico da tutela de urgência é a existência de uma situação de risco ou perigo que, de per si, reclama a atuação imediata do Estado-Juiz, destinada a evitar a concretização de dano irreparável ou de difícil reparação ao interessado. TEREZA ARRUDA ALVIM WAMBIER ensina, com a propriedade que lhe é peculiar que: “Em palavras simples, pode-se afirmar, como ponto de partida, que só é possível cogitar tutela de urgência se houver uma situação crítica, de emergência. Dessa forma, a técnica processual empregada para impedir a consumação ou o agravamento do dano que pode consistir no agravamento do prejuízo ou no risco de que a decisão final seja ineficaz no plano dos fatos, que geram a necessidade de uma solução imediata é que pode ser classificada como tutela de urgência. É, pois, a resposta do processo a uma situação de emergência, de perigo, de urgência. (…) O caput do art. 300 traz os requisitos para a concessão da tutela de urgência (cautelar ou satisfativa), quais sejam, evidência da probabilidade do direito o e o perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo. Noutras palavras, para a concessão da tutela de urgência cautelar e da tutela de urgência satisfativa (antecipação de tutela) exigem-se os mesmos e idênticos requisitos: fumus boni iuris e periculum in mora. (…) O que queremos dizer, com “regra da gangorra”, é que quanto maior o “periculum” demonstrado, menos “fumus” se exige para a concessão da tutela pretendida, pois a menos que se anteveja a completa inconsistência do direito alegado, o que importa para a sua concessão é a própria urgência, ou seja, a necessidade considerada em confronto com o perigo da demora da prestação jurisdicional. O juízo da plausibilidade ou de probabilidade que envolve significativa dose de subjetividade ficam, a nosso ver, num segundo plano, dependendo do periculum evidenciado. Mesmo em situações que o magistrado não vislumbre uma maior probabilidade do direito invocado, dependendo do bem em jogo e da urgência demonstrada (princípio da proporcionalidade), deverá ser deferida a tutela de urgência, mesmo que satisfativa.” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. et al. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. p. 498, 2ª ed. São Paulo. Ed: Revista dos Tribunais).
Em síntese, o fumus boni juris consiste na probabilidade da existência do direito e o periculum in mora consiste no perigo de dano ou risco iminente à efetividade do processo (perigo de infrutuosidade).
O requerimento constante na inicial é nitidamente de natureza antecipatória dos efeitos da tutela final, tratando-se de medida excepcional, não em regra, e, para seu deferimento, constituem condições indispensáveis a existência de elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (art. 300 do NCPC).
Noutro giro, não se pode ignorar que poderá ser concedida a tutela, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco de resultado útil do processo, quando: a) ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; b) as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; c) se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa; d) a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável (art. 311 do NCPC)
Observe-se que a pandemia de COVID-19, declarada pela Organização Mundial de Saúde em 11 de março de 2020, é fato público e notório que ensejou a decretação do Estado de Calamidade Pública em âmbito federal, com vigência até 31/12/2020, decretado pelo Congresso Nacional, pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020.
É de amplo conhecimento, ainda, que alguns Estados da federação, amparados em orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ADI 6341 MC-REF, decretaram medidas de enfrentamento e prevenção ao COVID-19, como é o caso do Amazonas, onde o Sr. Governador do Estado editou Decreto nº43.269, de 04/01/2021, repristinando o Decreto nº 43.234, de 23/12/2020.
Posteriormente, em complemento, editou o Decreto nº 43.303, de 23 de janeiro de 2021, o qual ampliou as restrições antes estabelecidas e instituiu a restrição provisória da circulação de pessoas em espaços e vias públicas, em todos os municípios do Estado do Amazonas, durante as 24 horas do dia, salvo as hipóteses indicadas no referido ato.
Em sequência, foi editado o Decreto n° 43.348, de 31 de janeiro de 2021 que altera, na forma que especifica, o Decreto n.º 43.303, de 23 de janeiro de 2021, que dispõe sobre a ampliação da restrição temporária de circulação de pessoas, como medida para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional.
As referidas medidas restritivas impostas pelo ato governamental, visando a denominada “quarentena” ou isolamento/distanciamento social com vistas a reduzir a velocidade do alastramento do Sars-CoV-2, apresentam repercussões que extravasam as relações familiares e sociais, atingindo atividades laborativas e empresarias, máxime diante da existência de determinações de paralisação total de vários setores da economia.
Essa proibição de circulação de pessoas – e a consequente cessação da economia local imposta pela pandemia e pelo colapso do sistema público e privado de saúde – gera graves consequências socias e econômicas, em razão das quais a Defensoria Pública da União compareceu perante o Juízo para vindicar, em sede de tutela de urgência, a extensão do auxílio emergencial, nos moldes e condições que vigoravam quando do último pagamento.
Como de sabença, a tutela de urgência poderá ser concedida desde que existam elementos que evidenciem a probabilidade do direito (fumus boni juris) e o perigo de dano irreparável ou o risco ao resultado útil do processo (periculum in mora). Ausentes esses requisitos, ou se houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado, a tutela não poderá ser concedida, podendo ainda ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão fundamentada.
A presença de fumus boni juris exige a comprovação da verossimilhança fática, na qual se constata um considerável grau de plausibilidade no que tange à narrativa dos fatos trazida pelo autor, aliada a uma plausibilidade de ordem jurídica, subsumindo-se os fatos à norma invocada, a qual conduz aos efeitos pretendidos.
Por seu turno, o periculum in mora decorre da existência de elementos que demonstrem um perigo consequente, que eventual demora na prestação jurisdicional acarrete na eficaz realização do direito, ou seja, ao resultado útil do processo, entendido referido perigo de dano como aquele certo, atual e grave.
No presente caso, vejo caracterizada tanto a verossimilhança das alegações quanto o perigo da demora.
É importante não se olvidar que, no tocante ao direito à saúde, o Texto Constitucional consigna ser competência material comum da União, dos Estados e dos Municípios cuidar da saúde, da mesma forma que estabelece ser competência legiferante concorrente da União e do Estados tratar de tal assunto.
Na ADI nº 6341, eg. Supremo Tribunal Federal consignou que “a emergência internacional, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, não implica nem muito menos autoriza a outorga de discricionariedade sem controle ou sem contrapesos típicos do Estado Democrático de Direito. As regras constitucionais não servem apenas para proteger a liberdade individual, mas também o exercício da racionalidade coletiva, isto é, da capacidade de coordenar as ações de forma eficiente. O Estado Democrático de Direito implica o direito de examinar as razões governamentais e o direito de criticá-las.”
Como bem pontuado pelo Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto na ADI 6341 MC-REF / DF: “(…) sobre a questão do Estado do Amazonas, que é diferente da de São Paulo, do Rio, de Tocantins, que ontem apresentou a primeira vítima de covid. Ou seja, há peculiaridades locais que precisam ser analisadas. Por isso toda distribuição de competência na Constituição brasileira, seja distribuição de competências administrativas, seja a distribuição de competência legislativa, a distribuição de competência no Federalismo brasileiro foi baseada em um princípio: princípio da predominância do interesse. (…) Na previsão do art. 23, saúde pública é matéria de competência comum de todos os entes federativos; e não está só no art. 23. No art. 194, a Constituição também assim estabelece. (…) Não é possível que, ao mesmo tempo, a União queira ter monopólio da condução administrativa da pandemia nos mais de 5 mil Municípios. Isso é absolutamente irrazoável.” (Destacou-se)
Do provimento lançado na ADI nº 6341, extrai-se que: 1. O dever de cuidar da saúde – em sua acepção ampla – é de todos os entes que compõem a federação brasileira; 2. O ato do governo estadual de decretar o isolamento compulsório e, com isso, impedir as pessoas de trabalharem e gerarem renda para sua sobrevivência é legítimo e 3. Não subsiste o alegado risco de efeito multiplicador no provimento almejado nesta ACP, na medida em que a questão do Estado do Amazonas, que é diferente de outros locais como São Paulo, Rio de Janeiro e Tocantins. Ou seja, há peculiaridades locais que precisam ser analisadas individualmente.
A ação civil pública em análise, considerado o contexto fático e jurídico da quadra em que nos encontramos, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas que, aparentemente, estão sendo descumpridas pelo governo da União, o qual se omite de concretizar os comandos inscritos na Constituição da República, consignados em leis federais ou mesmo advindos de recomendações de organismos internacionais aos quais a Federação do Brasil está filiada.
Diante da aparente omissão do Poder Público Federal, faz-se premente a intervenção judicial com vistas a fazer cumprir e tornar efetivos o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à saúde e à vida que estão (e se afirma isso em sede de juízo de delibação) sendo solapados e/ou turbados em face do grave quadro que o vírus Sars-CoV-2, responsável pela COVID-19 impõe aos residentes no Amazonas.
É certo que a interferência do Poder Judiciário na formulação e implementação de políticas públicas é medida extraordinária e excepcional que só deve ocorrer se – e quando – os Entes públicos competentes, ao descumprirem suas obrigações e encargos, acabam por comprometer direitos individuais e/ou coletivos, colocando em risco o mínimo essencial necessário a assegurar a vida digna dos cidadãos, hipótese que resta demonstrada nestes autos em que a DPU, na defesa dos hipossuficientes, almeja a continuidade do pagamento do Auxílio Emergencial por dois meses ou até o final do estado de depauperamento do sistema de saúde do Amazonas, onde não há sequer leitos suficientes para atender aqueles que buscam socorro médico.
Em cumprimento à Carta Magna, é vedado ao Judiciário se demitir do dever de fazer observar os preceitos sobre os quais se fundam os alicerces da República brasileira e do “Estado Providência” consagrado na Constituição Cidadã de 1988, cujas característica os pais fundadores da Nova República se inspiraram nos axiomas do Welfare State insertos desde as Constituições do México, de 1917 e a da Alemanha de Weimar em 1919(ESPING-ANDERSEN. “As três economias políticas do Welfare State”. Trad. de Dinah de Abreu Azevedo. In: Lua nova: revista de cultura e política, n. 24, setembro de 1991. p. 101).
Acerca de tal missão do Estado-Juiz já se posicional o Supremo Tribunal Federal:
“DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO – MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO. – O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. (…) Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. (…) A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.“ (RTJ 185/794-796). Destaques ausentes no original.
“(…) LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO – INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES – PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS (…) A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional , notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes. (…)” (STF – AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO ARE 639337 SP). Destaques ausentes no original.
Cabe assinalar que a UNIÃO não pode se omitir do dever de concretizar os direitos de segunda geração que ostentam o caráter impositivo, especialmente aqueles que atribuem e asseguram a saúde, a vida e a existência dignas.
Cabe ao Poder Judiciário garantir o cumprimento da Constituição, assegurando que o Governo Federal garanta aos cidadãos do Amazonas uma vida sem a fome que hoje coabita a maioria dos lares amazonenses acoimados pela COVID 19; castigados pelo colapso do sistemas público e privado de saúde que ceifou centenas de vidas (muitas das quais feneceram por asfixia por falta de suprimento de oxigênio nos hospitais em que foram buscar a saúde e encontraram o desamparo e a morte) e, agora, são proibidos de exercer atividade laborativa e empresarial diante da necessária restrição à liberdade ambulatória estabelecida pelo Governo Estadual, em observância a critérios sanitários inarredáveis.
Não se olvide que a concretização desses direitos transindividuais de caráter positivo inerentes à própria cidadania digna (CAMPANTE, Rubens Goyatá. Direitos sociais e justiça. In: AVRITZER, Leonardo (Orgs.). Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 379) está subordinada às possibilidades orçamentárias do Governo Central, o qual, diga-se, realizou no ano de 2020 um dos maiores programas de transferência de renda do mundo, distribuindo aos brasileiros o valor de R$620,5 bilhões, segundo divulgado pela Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia[2], havendo o Amazonas recebido em 2020 o valor de R$516 milhões a título de transferências federais para o combate à COVID, segundo dados da Secretaria de Estado da Fazenda (Sefaz-AM) e do Fundo Estadual de Saúde (FES), da Secretaria de Estado da Saúde (SES-AM).[3]
É com base nas previsões orçamentárias em relação a despesas e receitas que o Estado pode corporificar os direitos prestacionais por meio de políticas públicas, sendo adequado ao argumento lição de Holmes e Sunstein: “A legal right exists, in reality, only when and if it has budgetary costs” (HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: Norton, 2000. p. 19. Tradução livre : “Um direito legal existe, na realidade, apenas quando e se tiver custos orçamentários”).
O Poder Judiciário, em regra, não deve intervir em esfera reservada ao Executivo ou Legislativo nem substituí-los em juízos de conveniência e oportunidade quanto às escolhas e prioridades na alocação dos recursos públicos, na medida em que essas “escolhas trágicas” ocorrem diante da tensão dialética entre a necessidade estatal de tornar concretas e reais as ações e prestações atinentes aos direitos que asseguram a dignidade da pessoa humana, de um lado, e as dificuldades governamentais de viabilizar a alocação de recursos financeiros, sempre aquém do necessário, de outro. A jurisprudência da Suprema Corte há muito se consolidou com essa orientação. Leia-se:
“(…) LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO – INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES – PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” – RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL (…) A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional , notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes. A CONTROVÉRSIA PERTINENTE À RESERVA DO POSSÍVEL E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A QUESTÃO DAS ESCOLHAS TRÁGICAS . – A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional , quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras escolhas trágicas, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental. Magistério da doutrina . – A cláusula da reserva do possível – que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição – encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes . – A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais ( CF , art. 1º , III , e art. 3º , III ), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV). A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS . – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive . – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional , a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados (…)”. (STF – AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO ARE 639337 SP). Sem destaques no original.
DANIEL SARMENTO, ao versar o tema pertinente ao controle judicial de políticas públicas, expõe com acuidade a evolução da interpretação doutrinária e jurisprudencial, professorando argumentações de relevo cuja leitura se recomenda: “Até então, o discurso predominante na nossa doutrina e jurisprudência era o de que os direitos sociais constitucionalmente consagrados não passavam de normas programáticas, o que impedia que servissem de fundamento para a exigência em juízo de prestações positivas do Estado. As intervenções judiciais neste campo eram raríssimas, prevalecendo uma leitura mais ortodoxa do princípio da separação de poderes, que via como intromissões indevidas do Judiciário na seara própria do Legislativo e do Executivo as decisões que implicassem controle sobre as políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos sociais. Hoje, no entanto, este panorama se inverteu. Em todo o país, tornaram-se freqüentes as decisões judiciais determinando a entrega de prestações materiais aos jurisdicionados relacionadas a direitos sociais constitucionalmente positivados. (…). Atualmente, pode-se dizer que o Poder Judiciário brasileiro ‘leva a sério’ os direitos sociais, tratando-os como autênticos direitos fundamentais, e a via judicial parece ter sido definitivamente incorporada ao arsenal dos instrumentos à disposição dos cidadãos para a luta em prol da inclusão social e da garantia da vida digna. (…). As complexidades suscitadas são, contudo, insuficientes para afastar a atuação do Poder Judiciário na concretização dos direitos sociais. Com a consolidação da nova cultura constitucional que emergiu no país em 1988, a jurisprudência brasileira deu um passo importante, ao reconhecer a plena justiciabilidade dos direitos sociais. No entanto, essas dificuldades devem ser levadas em conta. Vencido, com sucesso, o momento inicial de afirmação da sindicabilidade dos direitos prestacionais, é chegada a hora de racionalizar esse processo. Para este fim, cumprem importante papel, como parâmetros a orientar a intervenção judicial nesta seara, duas categorias que vêm sendo muito discutidas na dogmática jurídica: a reserva do possível e o mínimo existencial, (…). Há outras, todavia, que também têm importância capital neste campo, como o princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de vedação à proteção deficiente, e o princípio da proibição do retrocesso social.” (“Reserva do Possível e Mínimo Existencial”, “in” “Comentários à Constituição Federal de 1988”, p. 371/388, 371/375, 2009, Gen/Forense).
GUIDO CALABRESI e PHILIP BOBBITT, precursores do estudo acerca das “escolhas trágicas” que garantam o mínimo existencial diante da teoria da reserva do possível, apresentam opinião relevante acerca do tema em análise, destacando o fato de que as opções de escolha da política pública não são imunes a relações dialógicas, ao contrário, são marcadas por conflitos ideológicos e éticos donde preponderam a preservação de direitos mais relevantes, conforme a sociedade e o tempo em que se analisa. No caso destes autos, o que há de preponderar é o direito à dignidade da pessoas, hoje desamparadas da prestação de serviços de saúde, proibidades de saírem de suas casas e, com isso, sem renda para a garantia do básico. As ponderações de BOBBITT E CALABRESI são muito pertentes à demanda em análise. Leia-se:
“We doubt whether there could be an open society whose values were sufficiently consistent to obviate the possibility that scarcity would bring about tragic choices.
Morality-since the terms in which it is stated and by which it is understood must be grounded in culture and tradition-is not simply the aggregate demand of individuals atomistically wishing to do right. (…)
Indeed, a culture such as ours which implicitly recognizes contradictions in its moral scheme by the use of a strategy of cycles has opted to remain sensitive to values it continues to cherish at the moment they are most frail, while being amenable to change, including moral change.
The alternative, as we have seen, would be the final rejection of some fundamental values. We could simply discard those basic values which, with others, evoke the tragic dilemma.”[4](CALABRESI, Guido; BOBBITT, Philip. Tragic Choices. New York: W. W. Norton & Company, p. 198-199. Ed. 1978).
As teses defensivas apresentadas pelos eminentes Advogados da União, apesar de seus esforços argumentativos, não suplantam o entendimento firmado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45, de relatoria do ministro Celso de Mello, cujas orientações se aplicam ao caso em análise, Veja-se:
“A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais a prestações materiais depende, naturalmente, dos recursos públicos disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para o legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a conformação desse conteúdo pelo Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos Poderes […]. Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a jurisprudência têm percebido o alcance das normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação adequada como princípios-condição da justiça social. A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como consequência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos. […] Em geral, está crescendo o grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões inconstitucionais.” (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45/DF. Rel. Min. Celso de Mello)
O não-fazer da Administração Federal, que implica em abandonar a população do Amazonas à própria sorte, configura-se em evidente violação da Constituição, o que deve ser remediado pela intervenção judicial. Pois, conforme já pontuado pelo STF, “se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão… A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.” (RTJ 185/794-796)
Não se pode olvidar o tema pontuado pela parte Requerida no que pertine aos limites orçamentários que afligiriam a Administração, cujos recursos seriam sempre aquém das necessidades inarredáveis da sociedade. O argumento atinente à “reserva do financeiramente possível” não pode ser agitado para contrapor o princípio da dignidade da pessoa humana que assume caráter totêmico e insuperável por quaisquer argumentos que porventura possam ser adotados no sentido de realizar sua ponderação ou mitigação, na medida em que se deve assegurar um mínimo existencial quando houver omissão do Poder Executivo ou Legislativo na densificação desse direito. Isso porque, conforme orientação da Corte Suprema, o direito à vida e à dignidade de vida dos cidadãos se sobrepõe-se a quaisquer argumentos de outras espécies.
Nesse sentido, vide:
“Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida”. (STF, PETMC nº. 1.246/SC)
Também os seguintes precedentes: STF – Suspensão de Tutela Antecipada 283/PR – Relator: Min. Gilmar Mendes. STJ – Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.136.549/RS – Relator: Min. Humberto Martins, fazem relevante estudo sobre o tema.
O programa que instituiu o Auxílio Emergencial foi criado a partir da Lei nº 13.982, de 02.04.2020, sendo prorrogado pela Medida Provisória 1000/2020, desta MPv se extrai a seguinte justificativa:
“A proposta prevê o Auxílio Emergencial Residual para evitar que os milhões de brasileiros atendidos pelo auxílio emergencial, instituído pela Lei nº 13.982, de 02 de abril de 2020, voltem a ficar desassistidos a partir do encerramento deste benefício ainda em meio à pandemia de Covid-19 e às graves consequências econômicas por ela ocasionadas. Ocorre que, mesmo após 5 meses de concessão do auxílio emergencial, a pandemia de Covid-19 continua existindo e provocando seus efeitos, sendo necessária a manutenção do pagamento de um benefício destinado a conferir proteção e alívio da situação de pobreza especialmente à população mais vulnerável, ainda que em valor reduzido.
(…)
Sem a oportunidade de obter renda, tais pessoas precisaram urgentemente do apoio financeiro e da proteção social do Poder Público, o que foi tornado possível pela sanção da Lei nº 13.982, de 2020. Não obstante que em muitas localidades as atividades econômicas já estejam sendo retomadas de forma gradual, na maior parte dos municípios brasileiros as medidas de isolamento social ainda persistem, de modo que é necessária a continuidade das ações de proteção social a essas famílias que estão enfrentando reduções significativas de sua renda em decorrência da desaceleração da atividade econômica” (destacou-se)
Ora, é público e notório que as circunstâncias que impuseram a prorrogação do pagamento do Auxílio Emergencial em setembro de 2020, não apenas continuam presentes na realidade da população amazonense, mas se agravaram diante do colapso do sistema público e privado de saúde e com a adoção pelo Governo Estadual de medidas ainda mais restritivas que impõem o isolamento e impede grande parte da população sair às ruas.
Quadro pandêmico enfrentado pela população amazonense hoje é bem pior do que o vivido nos idos de quando editada a Medida Provisória nº 1000 de 2020 (02/09/2020). Para se ter uma ideia da realidade, em setembro de 2020, 19.030 pessoas estavam contaminadas pelo COVID no Amazonas e faleceram 177 pessoas, ao passo que no mês de janeiro de 2021, já são 53.447 os contaminados, com o número de vítimas fatais no total de 2.832 por Covid-19 no Amazonas (Fundação de Vigilância Sanitária de Manaus – http://www.fvs.am.gov.br)
Os gráficos e imagens abaixo colacionados possibilitam a análise do quadro epidemiológico no Amazonas:
Fundação de Vigilância Sanitária de Manaus (http://www.fvs.am.gov.br)
Johns Hopkins Coronavirus Resource Center (https://coronavirus.jhu.edu/map.html)
O histórico fático aqui apresentado demonstra a não mais poder que que as premissas empíricas que impuseram a edição da MPV nº 1000/2020, prorrogando o Auxílio Emergencial, hoje não apenas se encontram presentes no Amazonas, mas se agravaram de tal forma que a continuação do pagamento desse auxilio se impõe, não podendo o Poder Público Federal se omitir de tal dever, sob pena de malferir o ordenamento jurídico, máxime quando há previsão expressa na Lei de Plano Plurianual 2020-2023, de que: São diretrizes almejadas pela União: a promoção e defesa dos direitos humanos, com foco no amparo à família. (Art. 3º, inc. VIII da Lei nº 13.971, de 27 de dezembro de 2019).
O direito subjetivo a que o Estado brasileiro assegure uma vida digna e sem fome a seus cidadãos é consagrado também em tratados e convenções das quais o Brasil é signatário, dentre as quais menciono:
A Declaração Universal do Direitos do Homem, em seu artigo 3°, reconhece que: “todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”; e, no art. 25°. 1, prevê que “toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação (…)”.
A Carta da Organização dos Estados Americanos – OEA, que em seu art. 34 estabelece como meta básica, a de alcançar a “alimentação adequada, especialmente por meio da aceleração dos esforços nacionais no sentido de aumentar a produção e disponibilidade de alimentos”.
O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, de 1966, que estabelece em seu art. 11, o “direito de todos de usufruir de um padrão de vida adequado para si mesmo e sua família, incluindo moradia, vestuário e alimentação adequados, e à melhoria contínua das condições de vida”.
O Protocolo de San Salvador que reconhece expressamente, no seu art. 12, que toda pessoa tem direito a nutrição adequada, que lhe assegure a possibilidade de gozar do mais alto nível de desenvolvimento físico, emocional e intelectual.
O direito à alimentação adequada, finalidade para a qual se instituiu o Auxílio Emergencial que garante o mínimo necessário à sobrevivência, foi detalhado no Comentário Geral nº 12 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, de 1999, que estabeleceu: “O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção. O direito à alimentação adequada não deverá, portanto, ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, que o equaciona em termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos. O direito à alimentação adequada terá de ser resolvido de maneira progressiva. No entanto, os estados têm a obrigação precípua de implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome, como estipulado no parágrafo 2 do artigo 11, mesmo em épocas de desastres, naturais ou não”. (Destacou-se)
Há ato editado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em 10.04.2020 – no exercício das funções que lhe são conferidas pelo artigo 106 da Carta da Organização dos Estados Americanos e aplicando o artigo 41.b da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o artigo 18.b de seu Estatuto – aprovou a resolução nº 01/2020, que estabelece padrões e recomendações com medidas a serem adotadas pelos Estados na atenção e contenção da pandemia e devem ter como centro o pleno respeito aos direitos humanos. Dentre as recomendações fixadas, estão a de adotar de forma imediata, urgente e com a devida diligência todas as medidas que sejam adequadas para proteger os direitos à vida, à saúde e à integridade pessoal das pessoas, frente ao risco que representa a presente pandemia.
Foi consignado ainda na sobredita resolução da CIDH que é compromisso assumido pelos Estados membros:
“Garantir que as medidas adotadas para enfrentar a pandemia e suas consequências incorporem de maneira prioritária o conteúdo do direito humano à saúde e seus determinantes básicos e sociais, os quais se relacionam com o conteúdo de outros direitos humanos, como a vida e a integridade pessoal, e de outros DESCA, tais como acesso a água potável, acesso a alimentação nutritiva, acesso a meios de limpeza, moradia adequada, cooperação comunitária, suporte em saúde mental e integração de serviços públicos de saúde, bem como respostas para a prevenção e atenção da violência, assegurando efetiva proteção social, inclusive, entre outros, a concessão de subsídios, renda básica ou outras medidas de apoio econômico”. (Destacou-se)
Todos esses atos internacionais subscritos pelo Brasil visam, essencialmente, a robustecer os direitos fundamentais de caráter prestacional, que por serem direitos de segunda geração e essenciais ao Estado Democrático de Direito, impõem uma atuação positiva do Governo que não pode simplesmente deixar ao abandono 486 mil famílias no Amazonas, porque tal inação da União importaria em claro desrespeito à vontade da constituição.
Observe-se WALTER BURCKHARDT, ainda no século XIX, já aclarava que aquilo identificado como vontade da Constituição, “deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático”. Ao reverso, aquele Gestor Público que não se dispõe a eventuais sacrifícios para dar vida ao Texto, “malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas , e que, desperdiçado, não mais será recuperado” (Walter Burckhardt, Kommentar der schweizerichen Bundesverfassung. 3a. ed. 1931. p. VIII. Edição original acessível no sítio https://swuv.jimdofree.com/legal-philosophy-and-general-jurisprudence-in-switzerland-an-anthology/legal-philosophy-and-general-jurisprudence-fifth-section/5-2-walther-burckhardt-einleitung-zum-kommentar/).
A intervenção do Poder Judiciário para compelir a implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional e em tratados e convenções subscritas pelo Brasil, elidindo as consequências deletérias da omissão estatal, é medida que se impõe no caso em tele, diante dos elementos fáticos e jurídicos apresentados pela Autora e pela amicus curiae admitida neste feito, não sendo aceitável a justificativa apresentada pela UNIÃO quanto à suposta ausência de recuros.
Nesse ensejo, correta e oportuna a ANA PAULA DE BARCELLOS, ao tratar da questão da efetividade dos princípios constitucionais. Veja-se:
“Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição.
A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível” (A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, p. 245-246, 2002, Ed. Renovar). Grifei.
A Autora indica opção de fonte dos recursos para adimplemento dos pedidos por si formulados os valores supostamente constantes no “fundo formado pelas reservas monetárias de que trata o art. 12 da Lei nº 5.143, de 20 de outubro de 1966, extinto pela Lei 14.007/20, que, em razão de veto presidencial acabaram não destinados “aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para a aquisição de materiais de prevenção à propagação da Covid-19”. Em relação à fonte específica de custeio, entendo que não cabe manifestação judicial, porque haveria interferência judicial indevida na seara da discricionariedade administrativa.
O que é certo é que não há como agasalhar a assertiva de inexistência de recursos quando há atuação do Poder Público Federal (Medida Provisória 795/2017 convertida na Lei nº 13.586/2017) isentando do pagamento de Imposto de Renda (IR) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) até 2040 as ricas empresas petrolíferas estrangeiras que extraem petróleo no Brasil.
A renúncia fiscal em favor dessas empresas, segundo estudo apresentado pelo consultor da Câmara dos Deputados, Dr Paulo César Ribeiro Lima, perante o Senado da República – Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo (CDR), há a estimativa de que as isenções fiscais para empresas de petróleo estrangeiras, provocarão uma perda de arrecadação do Imposto de Renda (IR) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) superior a R$1trilhão até o ano de 2040. Ora, um País que pode conceder tal tipo de favor fiscal para um seleto grupo de empresas, renunciando a tal magnitude de receita, não pode deixar de assistir sua população, especialmente diante do quadro pandêmico em que se encontra o Amazonas.[5]
Nesse ensejo, conveniente trazer a lume um profunso estudo elaborado pelo SENADOR EDUARDO BRAGA constante na justificação de seu projeto de Lei nº 1952/2019, onde aponta as perdas fiscais decorrentes da política do Governo Federal de não tributar imposto de renda sobre agentes que possuem capacidade contributiva, políticas estas que implicam em renúncia anual de bilhões de reais. Veja-se: “Para a instituição de tributação sobre lucros e dividendos, estimamos neste cenário arrecadação anual de R$97,6 bilhões, sendo R$54,3 bilhões relativos a beneficiários pessoas físicas, R$32,5 bilhões relativos a beneficiários pessoas jurídicas e R$10,8 bilhões relativos a lucros e dividendos pagos no exterior. O fim da dedução de juros sobre o capital próprio contribui com R$10,2 bilhões e o fim da isenção sobre rendimentos financeiros com mais R$1,7 bilhão. Tudo somado, espera-se nesse cenário um aumento da arrecadação do imposto de renda na ordem de R$ 42,2 bilhões, dos quais em torno de R$ 21,5 bilhões seriam destinados aos cofres da União, e o restante aos entes subnacionais, segundo as normas constitucionais para a repartição deste tributo.”[6] (Destacou-se)
Vê-se que enquanto a UNIÃO faz a escolha de arcar anualmente com tax expenditure de bilhões de reais em favor de empresas e pessoas físicas têm capacidade contributiva, não é aceitável a tese de que não haveria recursos para o pagamento de auxílio emergencial a pessoas que não possuem o mínimo que lhes assegure o direito de não passarem fome diariamente, razão por que há a imprescindibilidade da intervenção judicial que faça com que os Agentes Públicos que administram a UNIÃO cumpram a Constituição.
A alegação da UNIÃO no sentido de que poderia haver o aumento de dívida pública já tão elevada não merece acolhida, não apenas em face do entendimento do STF a respeito do tema, conforme antes assinalado, mas sobretudo porque o financiamento do direito prestacional inalienável que aqui se reconhece pode ser realizado por meio de diversas outras medidas econômicas que não se limitam à contração de novas dívidas.
Nesse sentido, há que se pontuar que a prática administrativa aparentemente contradiz o discurso da defesa apresentada pela União quanto à suposta ausência de recursos. Há fato público e notório de que houve o dispêndio de mais de um bilhão e oitocentos milhões de reais para a compra de itens como biscoitos (R$50.149.168,18) e sucos, refrigerantes e sorvetes (R$98.022.514,36).[7]
Atente-se que apenas com a aquisição desses itens não essenciais (biscoitos, sucos, refrigerantes e sorvetes) foram gastos R$148.171.682,54, valor suficiente para o pagamento de 493.905 (quatrocentos e noventa e três mil, novecentos e cinco) benefícios de auxílio emergenvial no valor individual de trezentos reais.
Enquanto a Defensoria Pública da União comparece perante o Juízo para pugnar pelo cumprimento da Constituição da República, de modo a que se assegure benefício que garanta o mínimo necessário à existência digna dos brasileiros residentes no Amazonas, vê-se a UNIÃO despendendo quase 150 milhoes de reais para adquirir produtos não essenciais e cujo interesse público é, no mínimo, questionável.
Razão pela qual se aplica integralmente o precedente do STF, segundo o qual “A cláusula da reserva do possível – que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição – encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana” (STF – AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO ARE 639337 SP).
Diante do exposto e por tudo mais que dos autos consta, acolho a pretensão autoral e defiro parcialmente a tutela de urgência, determinando à UNIÃO que prorrogue o pagamento do Auxílio Financeiro Emergencial às pessoas residentes no Estado do Amazonas, mediante parcelas no valor mensal de R$300,00 (trezentos reais), em até 15 (dez) dias, independentemente de novo requerimento do beneficiário, de forma subsequente à última parcela por si recebida do auxílio emergencial de que trata a Medida Provisória nº 1.000/20, e desde que o beneficiário ainda atenda aos requisitos estabelecidos na referida Medida Provisória. O pagamento deve ser realizado por 2 (dois) meses.
O descumprimento da ordem exarada ensejará a incidência de multa diária no valor de R$100.000,00 (cem mil reais) até o limite de 30 (trinta) dias, a ser originalmente suportada pela UNIÃO, mas com direito de regresso contra as autoridades públicas porventura responsáveis pelo eventual não atendimento do comando judicial.
A autuação deve ser ajustada, em face da exclusão da DATAPREV SA e da CAIXA ECONÔMICA FEDERAL.
Este provimento é interinal, portanto, poderá ser alterado e ajustado no decorrer da tramitação processual, razão porque não foi acolhido – pelo menos por ora – o requerimento formulado na parte final do item b.1. constante na petição inicial.
Intime-se a UNIÃO para imediato cumprimento, por intermédio de Oficial de Justiça Plantonista.
Ato publicado eletronicamente. Comunicações de estilo.
Manaus, 3 de fevereiro de 2021.
Ricardo Augusto De Sales
Juiz Federal