MANAUS – O vereador Raiff Matos (DC) informou na tribuna da CMM (Câmara Municipal de Manaus) que vai questionar o Ministério da Educação sobre o conteúdo de um livro de Língua Portuguesa que, segundo ele, “banaliza o suicídio”.
O livro didático da série Avalia Brasil é destinado a estudantes do 6º Ano do Ensino Fundação. Segundo o vereador, o material é distribuído pelo Governo Federal e é utilizado pela rede estadual de Educação.
“Estou fazendo a minha parte e vou continuar alerta para preservar as famílias, inclusive nas escolas”, diz o vereador.
Membro da bancada evangélica e defensor das bandeiras bolsonaristas, Raiff criou o hábito de dar ‘blitz’ em escolas e secretarias de educação, recolher material didático e opinar se o conteúdo dos livros estão o não de acordo com o que ele pensa.
Raiff diz que não prega a censura do texto, mas entende que ele não é adequado para alunos do 6º ano.
“Que fique claro que não se trata de censura a nenhum livro. Mas apenas uma adequação de conteúdo à faixa etária para a preservação dos estudantes”, disse o vereador.
O texto censurado pelo vereador é um trecho do conto “Dois corpos que caem”, do escritor João Silvério Trevisan.
O conto integra o livro “Os cem melhores contos do século” (Editora Objetiva).
O escritor é um ativista da causa LGBT no Brasil desde a década de 1970.
O conto:
Dois corpos que caem*
João Silvério Trevisan
Por simples acaso, dois desconhecidos encontraram-se despencando juntos do alto do Edifício Itália, no centro de São Paulo.
– Oi – disse o primeiro, no alvoroçado início da queda. – Eu me chamo João. E você?
– Antônio – gritou o segundo, perfurando furiosamente o espaço.
E, só pra matar o tempo do mergulho, começaram a conversar.
– O que você faz aqui? – perguntou Antônio.
– Estou me matando – respondeu João. – E você?
– Que coincidência! Eu também. Espero que desta vez dê certo, porque é minha décima tentativa. anos venho tentando. Mas tem sempre um amigo, um desconhecido e até bombeiro que impede. Você afinal está se matando por quê?
– Por amor – respondeu João, sentindo o vento frio no rosto. – Eu, que amava tanto, fui trocado por um homem de olhos azuis. Infelizmente só tenho estes corriqueiros olhos castanhos…
– E não lhe parece insensato destruir a vida por algo tão efêmero como o amor? – ponderou Antônio, sentindo a zoada que o acompanhava à morte.
– Justamente. Trata-se de uma vingança da insensatez contra a lógica – gritou João num tom quase triunfante. – Em geral é a vida que destrói o amor. Desta vez, decidi que o amor acertaria contas com a vida!
– Poxa – exclamou Antônio – você fez do amor uma panaceia!
– Antes fosse – replicou João, com um suspiro. – Duvidoso como é, o amor me provocou dores horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo, solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que o amor destrói certezas com a mesma incomparável transparência com que o caos significante enfrenta a insignificância da ordem. Não, o amor não é solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por ele me trouxe paz.
Ante o vertiginoso discurso, ambos tentaram sorrir contra a gravidade.
– E você, como se sente? – perguntou João a Antônio.
– Oh, agora estou plenamente satisfeito.
– Então por que busca a morte?
– Bom – respondeu Antônio – me assustou descobrir um fiasco primordial: que a razão tem demônios que a própria razão desconhece. Daí, preferi mergulhar de vez no mistério.
– Sim, da razão conheço demasiados horrores. Mas que mistério é esse tão importante a ponto de merecer sua vida?
– Não sei – respondeu Antônio. – Mistério é mistério.
– Mas morto você não desvendará o mistério! – protestou João.
– Por isso mesmo. O fundamental no mistério é aguçar contradições, e não desvendar. Matar-me, por exemplo, é bom na medida que me torna parte do enigma e, de certo modo, o agudiza. Tem a ver com a fé, que gera energias para a vida. Ou para a história, quem sabe…
– Taí um negócio que perdi: a fé. Deus para mim… – e João engasgou.
– Ora – revidou Antônio vivamente. – A fé nada tem a ver com Deus, que se reduziu a uma pobre estrela anã de energias tão concentradas que já nem sai do lugar. Deus desistiu de entender os homems, e virou também indagador. Sem Deus nem Razão, a única fé possível é mergulhar neste abismo do mistério total.
– Mas para isso é preciso ao menos saber onde está o mistério – insistiu João com os cabelos drapejando ao vento.
– Ué, o mistério está em mim, por exemplo, que me mato para coincidir comigo mesmo. Mas há mistério também em você: seu morrer de amor é o mais impossível ato de fé. Graças a ele, você participa do mistério. Porque se apaixonou pelos abismos.
João olhou com olhos estatelados, ao compreender. E Antônio, que já faiscava na semi-realidade da vertigem, gritou com todas as forças:
– Há sobretudo este mistério maior de estarmos, na mesma hora e local, cometendo o mesmo gesto absurdo e despencando para a mesma incerteza, por puro acaso. Além de cúmplices, a intensidade deste mergulho nos tornou visionários. Você não vê diante de si o desconhecido? É que já estamos perfurando a treva.
E como tudo de fato reluzia, João também ergueu a voz:
– Sim, sim. É espantoso o brilho do absurdo.
– E agora – disse Antônio bem diante do rosto de João – falemos um pouco da permanência. Você gosta dos meus olhos azuis?
Foi quando os dois corpos se estatelaram na Avenida São Luiz.
*Reproduzido do livro “Os cem melhores contos do século” (Editora Objetiva), seleção de Italo Moriconi