MANAUS – A Justiça Federal reafirmou, em nova decisão referente a ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, o caráter vinculante da consulta prévia, livre e informada, nos moldes previstos pela Organização Internacional do Trabalho, antes de qualquer obra de grandes empreendimentos com potenciais impactos sobre as terras do povo Waimiri Atroari, situadas na divisa entre os estados do Amazonas e de Roraima. Isso significa que esse tipo de empreendimento não demanda apenas a consulta prévia, mas também a necessidade de consentimento expresso daquele povo acerca da medida pretendida pelo Estado.
A decisão determina ainda o cumprimento, em até 90 dias, de parte da liminar concedida anteriormente para obrigar a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a União a adotarem as medidas necessárias para proteger os 21 locais sagrados do povo indígena, indicados por eles próprios a partir de audiência realizada na sede da Justiça Federal, em março deste ano.
A manifestação da Justiça acolheu a tese defendida pelo MPF no processo de reparação pelos danos causados durante a construção da BR-174 e responde a um recurso da União, que alegava não ter ficado claro – entre outros pontos – se a decisão liminar abrangia também as obras da linha de transmissão de energia Manaus – Boa Vista, já que o tema é objeto de análise em outro processo.
Na decisão mais recente, a Justiça esclarece que não tratou de casos específicos, mas sim de quaisquer empreendimentos posteriores à primeira decisão que “sejam capazes de causar impacto em grande escala”, tendo como parâmetro para identificar tais obras o conteúdo de uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Saramaka vs. Suriname.
Na ação, o MPF descreve a intenção de construir a linha de transmissão como uma das possíveis práticas de grande impacto que causam violação dos direitos indígenas e naturaliza o cenário gerado pela construção da estrada e os efeitos do genocídio sobre aquele povo para perpetuar novas violações. Por isso, o consentimento vinculante representa, na visão do órgão, não apenas uma obrigação da União, mas também uma forma de reparação pelos atos ilícitos cometidos pelo Estado brasileiro no passado.
A proteção de locais sagrados ou que foram palcos de violações também é um fator que impede novas violações e empreendimentos. “Com isso, qualquer tentativa futura de atuação do Estado na área depende do consentimento vinculante e do respeito aos 21 locais já protegidos, sendo que neste último caso a área total só será aferida plenamente após a delimitação pela união em 90 dias”, afirma Julio José Araujo Junior, coordenador do grupo de trabalho povos indígenas e regime militar.
Reparação por massacre – As decisões da Justiça se referem a ação civil pública apresentada pelo MPF em agosto de 2017, na qual requer a responsabilização do Estado brasileiro pelo massacre contra o povo Waimiri Atroari na abertura da rodovia BR-174, episódio emblemático entre os diversos casos de violações praticadas contra os povos indígenas durante a ditadura militar no Brasil. Diante das manifestações de defesa apresentadas no caso, o MPF no Amazonas acusou a União de sustentar as mesmas teses de defesa do desenvolvimento nacional a qualquer custo, utilizadas para justificar as violações que quase dizimaram os indígenas daquela região.
No processo, o órgão exige ainda a reparação dos danos causados, por meio de indenização no valor de R$ 50 milhões, pedido oficial de desculpas e inclusão do estudo das violações sofridas pelos indígenas nos conteúdos programáticos escolares, e requer também garantias de direitos para que tais episódios não se repitam. Estas medidas ainda serão analisadas pela Justiça Federal.
A ação civil pública segue tramitando na 3ª Vara Federal do Amazonas, sob o número 1001605-06.2017.4.01.3200.
Violações de direitos humanos – Na decisão liminar que determinou a realização da audiência, a Justiça Federal no Amazonas reconheceu violações praticadas contra os waimiri atroari quando da abertura da rodovia BR-174 e determinou ainda que empreendimentos capazes de causar grande impacto na terra indígena não podem ser realizados sem que haja consentimento prévio do povo indígena. A comunidade deve ser consultada, conforme a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de forma livre e informada, com base em regras a serem definidas pelo próprio povo Kinja, como os indígenas Waimiri Atroari se autodenominam.
Para os Kinja, a determinação referente à necessidade de consentimento do povo indígena para a realização de empreendimentos que causem impacto na terra indígena é fundamental, já que existem tentativas de utilização de seu território sem a adoção de consulta prévia ou mediante um procedimento meramente homologatório.
Um exemplo apontado pelo MPF na ação é justamente o projeto de construção de linha de transmissão cujo traçado cruza o território Waimiri Atroari no trecho onde se situa a rodovia. A nulidade do edital do leilão que previu a linha é objeto de contestação judicial em outra ação (18032-66.2015.4.01.3200), em razão da falta de consulta prévia, livre e informada e da não consideração de alternativas locacionais.
Depoimentos – Na ação, o MPF apresentou vasta documentação relatando a violação aos direitos do povo Waimiri Atroari. Durante a audiência realizada para indicação dos locais sagrados a serem protegidos, lideranças indígenas confirmaram pessoalmente a ocorrência dos massacres em diversos pontos da área tradicionalmente habitada por eles. “O nosso povo sofreu com a ditadura militar. Em vários pontos das aldeias, nos atacaram com canhões. Houve genocídio. Derramaram muito do nosso sangue, uma lembrança muito triste para o povo waimiri atroari”, confirmou o líder indígena Ewepe Marcelo.
Uma das sobreviventes aos bombardeios, Adje Rosa participou da audiência e contou, em sua língua materna, de que forma a tragédia afetou sua vida. “Eu sou uma das pessoas que escapou do massacre. Morreu o meu marido. Quem matou o meu marido deixou guariba morto lá próximo da aldeia. Escapei e todo o meu povo acabou”, relatou a indígena.
O indígena Bonaldo Warapiwa também sobreviveu a um dos ataques que dizimou toda a sua família e, na audiência, cobrou responsabilização pelo massacre. “Só escapei eu. Minha mãe e meu pai morreram. A comunidade inteira. Não identifiquei quem fez isso. Agora eu quero ouvir vocês para saber quem foi. Hoje, eu estou aqui como testemunha desse conflito”, disse na língua karib.