MANAUS – Um dia depois de uma reportagem sobre o assunto ser veiculada em rede nacional pela TV Globo, a Polícia Civil do Amazonas divulgou nesta segunda-feira (21) que remeteu à Justiça, ainda no final de agosto, o inquérito policial “acerca da organização criminosa que atuou no duplo homicídio qualificado de policiais militares da Companhia de Operações Especiais (COE), ocorrido no início de agosto, em Nova Olinda do Norte (a 135 quilômetros de Manaus)”. Foram indiciados nove supostos integrantes do bando, entre eles o presidente da Associação Nova Esperança do Rio Abacaxis (Anera), responsável pelas fiscalizações (que a PC chama de ilegais) que ocasionaram a morte dos policiais.
A reportagem da revista eletrônica Fantástico mostrou que ribeirinhos daquela região relatam agressões e abusos em meio a conflito entre policiais e traficantes. Segundo a matéria jornalística, a operação contra o tráfico de drogas gerou uma onda de terror. Policiais militares são suspeitos de agredir, torturar e matar indígenas e ribeirinhos.
Mas, a questão do tráfico de drogas é apenas parte da história. A matéria conta que, após um acordo mediado pelo Ministério Público Federal (MPF), os comunitário ganharam o direito de abordar quem entra com barcos no território para pescar para conferir se eles têm autorização para praticar pesca esportiva na região.
De acordo com a reportagem, a ação policial repressiva foi intensificada depois que um membro do governo, em um barco de pesca, foi abordado pelos comunitários e acabou sendo baleado de raspão. Dias depois, dois policiais morreram em uma ação de resposta e o conflito se agravou.
Veja trecho da matéria transcrita:
No fim de julho, uma comitiva de pesca com médicos, advogados e um secretário do governo estadual tentaram entrar no rio sem licença. Houve bate-boca com ribeirinhos, e o então secretário-executivo do fundo promoção social do Amazonas, Saulo Costa, tomou um tiro de raspão no ombro vindo da mata. Segundo moradores, o então secretário ameaçou voltar para se vingar, o que ele nega.
Uma semana após o ocorrido, no dia 3 de agosto, a mesma lancha particular voltou ao rio. Os ocupantes se identificaram como turistas, mas, segundo testemunhas, eram PMs à paisana. O grupo forçou a passagem e a tensão aumentou. Ação resultou em dois PMs mortos – o sargento Wagner Souza e o cabo Marcio de Souza – e dois feridos, vítimas de uma emboscada de traficantes que atuam na região.
O Fantástico mostrou ainda que um relatório reservado da Secretaria da Segurança Pública (SSP-AM) admitiu que resposta do Estado acabou atingindo quem não tinha nada a ver com a criminalidade.
O caso é investigado em âmbito federal. Na noite de domingo (20), logo após a veiculação da reportagem, a Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP-AM) divulgou uma nota afirmando que onda de violência em Nova Olinda do Norte não começou com a chegada dos reforços policiais.
“Ao contrário, o envio de efetivos teve o intuito de reprimir os crimes praticados na região por uma organização criminosa vinculada à Associação Nova Esperança do Rio Abacaxis (Anera). Conforme inquérito policial, indígenas e ribeirinhos eram reféns desse bando criminoso”, afirma a SSP-AM.
A nota contesta afirmações feitas por personagens ouvidos pelo programa e informa que a Corregedoria Geral também abriu inquérito para apurar os fatos e “aplicar punições cabíveis, caso sejam comprovadas as denúncias”. (confira a nota na íntegra no fim desta matéria).
O que aconteceu, segundo a SSP-AM
Durante a ação nas proximidades da comunidade Santo Antônio do Lira, às margens do rio Abacaxis, o 3º sargento Manoel Wagner Silva Souza e o cabo Márcio Carlos de Souza foram assassinados, e outros dois policiais foram baleados.
Os suspeitos vão responder por oito diferentes crimes. Presidente da Anera, Natanael Campos da Silva, vulgo “Natan”, e os irmãos Valdelice Dias da Silva, vulgo “Bacurau”, e Valcinei Dias da Silva, vulgo “Lapingo”, vão responder pelos crimes de organização criminosa, associação criminosa, duplo homicídio qualificado, duplo homicídio qualificado tentado, usurpação de função pública e extração ilegal de madeira.
Também foram indiciadas por associação criminosa as irmãs Zilma Dias da Silva, Enas Dias da Silva, Maria José Dias da Silva e Gleide da Silva Rodrigues, familiares de Bacurau e Lapingo, e os infratores identificados apenas pelas alcunhas de “Milton” e “Zé Carlos”.
Conduzidas pelo delegado Cícero Túlio, as investigações identificaram a atuação articulada dos suspeitos em diversos crimes ocorridos em comunidades rurais ao longo do rio Abacaxis. Segundo a PC, o bando de Bacurau, composto por seus familiares, era conhecido da população pelo envolvimento com o tráfico de drogas, crimes ambientais, homicídios e ameaças contra povos indígenas. Conforme a PC, a ligação entre Natanael e Bacurau se dava, principalmente, a partir das abordagens ilegais armadas a embarcações, ocasiões em que o grupo agia com violência.
A PC relata que foi um desses “episódios de truculência”, que chegou ao conhecimento das autoridades policiais em Manaus, que levou a polícia a investigar os crimes ocorridos na região. Na noite do dia 29 de julho, empresários e pescadores esportivos que navegavam pelo rio Abacaxis foram abordados pela fiscalização ida Anera, na qual, conforme a PC, o grupo armado proibia a navegação. Em três barcos, as vítimas foram ameaçadas e expulsas do lugar. Em depoimento, os empresários e pescadores esportivos disseram que, no dia seguinte, retornaram para negociar a entrada no rio, ocasião em que um dos integrantes do barco foi baleado.
A partir dessa ocorrência, a Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM) determinou o envio de efetivos policiais para apurar os fatos. Enquanto navegavam em busca do local do crime, os policiais foram abordados por Natanael. Em depoimento, os policiais sobreviventes relataram terem ouvido ameaças do presidente da Anera.
Testemunhas disseram, em depoimento, que Natanael informou Bacurau de que os policiais estavam na região em sua procura. Ao retornarem para patrulhamento mais tarde, os militares da COE se dirigiram para a comunidade Santo Antônio do Lira. Segundo a polícia local, Bacurau e seus familiares comandavam o tráfico na localidade e mantinham plantações de maconha. Assim que desembarcaram, os policiais foram atacados pelos criminosos escondidos na mata.
Além do envolvimento de Natanael no ataque a embarcação e no assassinato dos policiais, as investigações apontaram indícios de que o presidente da Anera agia em conjunto com o grupo no desmatamento e extração ilegal de madeira. Em um desses pontos, inclusive, foram encontradas plantações de maconha. A suspeita informada pela polícia é que as abordagens ilegais praticadas pelo bando tinham como finalidade ocultar a localização exata de drogas.
Durante a operação policial em Nova Olinda do Norte, foram realizadas 15 prisões e a apreensão e 11 armas de fogo. Quatro plantações de maconha, em duas comunidades distintas, foram localizadas pela Polícia Militar. Uma dessas plantações ficava ao lado da casa da irmã de Bacurau.
Nota da SSP-AM
NOTA DE ESCLARECIMENTO
A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM) não compactua com práticas ilícitas. As denúncias foram encaminhadas à Corregedoria Geral, que instaurou procedimentos criminais e administrativos para apurar os fatos e aplicar punições cabíveis, caso sejam comprovadas as denúncias. O secretário de Segurança Pública, coronel Louismar Bonates, repudia a tentativa de envolvê-lo no caso dos supostos abusos.
A SSP-AM esclarece que a “onda de violência” em Nova Olinda do Norte não começou com a chegada dos reforços policiais. Ao contrário, o envio de efetivos teve o intuito de reprimir os crimes praticados na região por uma organização criminosa vinculada à Associação Nova Esperança do Rio Abacaxis (Anera).
Conforme inquérito policial, indígenas e ribeirinhos eram reféns desse bando criminoso, liderado pelo nacional Valdelice Dias da Silva, vulgo “Bacurau”, que trabalhava para o presidente Anera, Natanael Campos da Silva, vulgo “Natan”. Em depoimento à Polícia Civil, uma liderança indígena descreveu a opressão e pediu a permanência da polícia devido aos reiterados episódios de violência praticados pelo bando de Bacurau. Com isso, depreende-se que não foram os “ribeirinhos” os surpreendidos com a presença de policiais, mas os infratores contumazes, crentes na impunidade de seus atos e que, inclusive, fugiram para terras indígenas após a chegada da polícia, aterrorizando a população inocente que ali reside.
Além do crime de organização criminosa, Natanael Campos da Silva, Bacurau e outros sete infratores, individualmente ou em grupo, tinham envolvimento em homicídios, roubos a embarcações, ameaças a povos indígenas, tráfico de drogas e desmatamento ilegal com a finalidade de comercializar irregularmente madeira e cultivar entorpecentes. Há relatos, ainda, da existência de garimpo ilegal com emprego de materiais proibidos e degradáveis ao meio ambiente, inclusive venenosos, como o cianeto de potássio.
Modus operandi do crime
Conforme as investigações, além das abordagens armadas para a Anera, “Bacurau” era conhecido pela prática do tráfico de drogas, crime feito com a participação de irmãos e familiares – muitos com diversas passagens pela polícia. O próprio Bacurau é um dos ex-presidiários resgatados da delegacia local, em 2018, por um bando armado.
Segundo parecer da Advocacia-Geral da União, de 8 de agosto de 2020, a Anera usurpava as funções do Estado ao exercer, ilegalmente, a fiscalização irregular armada nas comunidades do Rio Abacaxis. No documento, a AGU apresenta informações da Polícia Federal sobre as atividades criminosas na região. A PF diz que detectou áreas de plantio de maconha a partir de imagens de satélite, e afirma que “os crimes que incontestavelmente ocorreram no local foram os assassinatos dos policiais, tentativa de homicídio de outros dois, e cultivo de planta do gênero cannabis, ao que parece em uma ampla área nas proximidades das duas comunidades que ocupam as margens do Rio Abacaxis”.
Nesta recente operação, os policiais localizaram quatro plantações de maconha, uma delas ao lado da residência do irmão de Bacurau, ocasião em que uma cunhada dele foi presa portando arma de fogo.
Ordem dos fatos
A ação policial em Nova Olinda do Norte teve início com o registro de um Boletim de Ocorrência, em Manaus, que trouxe alerta sobre a gravidade do cenário de violência na região do Rio Abacaxis. Segundo a vítima, que informou estar com um grupo de pescadores esportivos, houve uma abordagem ilegal armada, no dia 24 de julho de 2020, perpetrada por membros da Anera. Na ocasião, foram ameaçados e impedidos de seguir, o que culminou posteriormente com a tentativa de homicídio.
Diante dos fatos graves, o sistema de Segurança encaminhou equipe policial especializada para a área. No mesmo dia em que chegaram à Nova Olinda do Norte, em 03 de agosto de 2020, os policiais da Companhia de Operações Especiais (COE) seguiram para identificar o local onde teria ocorrido o fato.
Acompanhados por testemunhas do crime, em três lanchas, uma delas uma patrulha fluvial do policiamento ambiental da PMAM, os militares foram abordados, no percurso, pelo presidente da Anera, que fez ameaças veladas, como consta do depoimento dos policiais sobreviventes.
Testemunhas dizem que Natanael informou Bacurau que a polícia estava à procura dele. Os policiais foram atacados logo depois de desembarcarem na comunidade Santo Antônio do Lira, onde Bacurau comandava bocas de fumo. Os infratores estavam de tocaia na floresta e atiraram contra os policiais, que foram brutalmente assassinados.
No final de agosto, a Polícia Civil remeteu à Justiça o inquérito sobre o caso. Natanael, Bacurau e Valcinei Dias da Silva, vulgo “Lapingo”, vão responder pelos crimes de organização criminosa, associação criminosa, duplo homicídio qualificado, duplo homicídio qualificado tentado, usurpação de função pública e extração ilegal de madeira.
Zilma Dias da Silva, Enas Dias da Silva, Maria José Dias da Silva e Gleide da Silva Rodrigues, familiares de Bacurau e Lapingo, foram indiciadas juntamente com os infratores identificados apenas pelas alcunhas de “Milton” e “Zé Carlos”. Eles vão responder por associação criminosa.
Apuração dos crimes
Sobre as mortes e desaparecimentos ocorridos na região de conflito, informamos que as investigações foram instauradas, mas devido à proibição da Justiça Federal, de atuação da polícia na área, os trabalhos estão prejudicados. Nenhuma hipótese para os crimes está descartada, até porque lideranças indígenas informaram que os criminosos entraram armados para se esconder nas comunidades onde esses crimes e os desaparecimentos aconteceram.
Eligelson de Souza da Silva foi baleado durante troca de tiros com a polícia. Um revólver foi apreendido com ele. Em depoimento, o pai de Eligelson disse que o jovem tinha envolvimento com o tráfico.
Sobre as denúncias de supostos abusos policiais, que estão em investigação, cabe informar que os relatos iniciais partiram do presidente da Anera, que acionou o procurador do Ministério Público Federal. Mesmo sem ter estado na área, o procurador pediu à Justiça para suspender a operação. Nesse mesmo documento, ele solicita “habeas corpus” para Natanael, o que foi negado pela Justiça Federal.
Além do presidente da Anera, outros suspeitos de ligação com o assassinato dos policiais e com práticas ilegais concederam entrevistas para emissora de televisão, sem mostrar o rosto, nas quais tecem acusações contra a polícia. Pelo menos duas pessoas indiciadas pelo assassinato dos militares, e que na época tinham prisão preventiva decretada pela Justiça, concederam tais entrevistas na qualidade de ‘ribeirinhos’ ocultando da reportagem eventual participação no crime.
Outro ponto a ser relembrado é que os relatos de supostos atos de violência, que buscam enredar o Comandante-Geral da Polícia Militar do Amazonas, coronel Ayrton Norte, partem justamente de Natanael, ligado a Bacurau, o homem diretamente responsável pelo duplo homicídio e dupla tentativa de homicídio dos policiais da COE.
Entretanto, ao ser ouvido pela Corregedoria, Natanael apresentou versão diferente da que deu a imprensa, e afirmou que, em nenhum momento, sofreu agressão por parte do Comandante da PM do Amazonas. Ele foi ouvido acompanhado por seu advogado e por um delegado da Polícia Federal, que assinaram o termo de declaração. Natanael sequer soube informar se o comandante da PM estava fardado ou sem farda.
O coronel Ayrton Norte reitera o compromisso da corporação na defesa do bem estar e da segurança da população do Amazonas, e afirma que não vai esmorecer diante de acusações levianas porque sua vida pessoal e profissional é pautada pela ética e o respeito às leis.
Também é oportuno mencionar que o presidente da Anera alegou, em petição, tortura durante o cumprimento de seu mandado de prisão. Uma mídia com gravação do momento do cumprimento do mandado foi juntada aos autos demonstrando que Natanael sequer foi algemado ou colocado no xadrez da viatura.
Ainda sobre as questões relacionadas à operação em Nova Olinda do Norte, é curioso que o procurador do MPF questione a realização de atividades policiais à paisana ao mesmo tempo em que defende as abordagens ilegais promovidas pela Anera, em flagrante usurpação da função do Estado, como aponta a AGU. Causa estranheza, ainda, que o procurador defenda, como consta em documentos públicos remetidos à Justiça Federal, que os agentes policiais do Estado do Amazonas se ‘identifiquem’ aos milicianos, como se houvesse relação de submissão e/ou subordinação dos agentes da lei do Estado aos “fiscais da Anera”.
Sendo o procurador o responsável por atuar em casos referentes às populações indígenas e comunidades tradicionais, cabe a ele informar à sociedade amazonense se as denúncias de violações contra os povos indígenas praticadas por pessoas vinculadas à Anera chegaram ao seu conhecimento. Entre os casos, o homicídio do filho de um cacique indígena, com 16 facadas, ocorrido em junho deste ano, segundo relato de uma liderança indígena, praticado pelo grupo de Bacurau. O crime ocorreu um mês antes da abordagem a embarcação de pescadores esportivos, seguida de tentativa de homicídio, e do posterior assassinato de policiais militares.
Também é importante que o procurador da República informe à população do Amazonas que procedimentos já foram adotados a partir das evidências de crimes praticados pelos membros da Anera, contra os povos indígenas e contra a União, assim como se recebeu denúncias, em algum momento, e que medidas adotou para apuração dos crimes de invasão de terras indígenas, tráfico de drogas e abordagens armadas a embarcações, identificados durante a operação policial deflagrada na cidade.
+Comentadas 1